Capítulo 17 — Revolução e ditadura

Porque a Revolução e a ditadura bolchevique eram coisas de natureza inteiramente diferente e até oposta. E é aqui que a maioria das pessoas comete o maior erro, ao confundir a Revolução Russa com o Partido Comunista e falar deles como se fossem uma só coisa — o que, enfaticamente, não são.

Isso ficará claro para nós se compararmos os objetivos da Revolução com as finalidades buscadas pelos bolcheviques.

A Revolução foi um poderoso levante contra a opressão e a miséria. Ela expressava o anseio das massas por liberdade e justiça. Tentou abolir tudo aquilo que mantinha o ser humano em sujeição, tornando-o escravo e besta de carga. A Revolução buscava estabelecer novas formas de vida, condições de verdadeira igualdade e fraternidade.

Já vimos que a Revolução não foi uma mudança superficial, que ela não parou com os eventos de fevereiro. O czar havia sido deposto e o poder de sua autocracia quebrado, mas o resultado foi apenas uma outra forma de governo. As condições econômicas e sociais permaneceram as mesmas. E eram justamente essas que o povo pretendia mudar. Por isso ocorreu a Revolução de Outubro. Seu propósito era reconstruir a vida por completo, sobre novas bases sociais.

Como essa reconstrução se daria? É evidente que tirar o Romanov do palácio do Kremlin e colocar Lenin em seu lugar não bastaria. Algo mais era necessário. Era necessário entregar a terra ao camponês, colocar as fábricas nas mãos dos trabalhadores e suas organizações laborais. Em suma, o objetivo de Outubro era proporcionar ao povo uma oportunidade de fazer uso da liberdade política conquistada em fevereiro.

Foi assim que as massas entenderam a situação. E agiram conforme essa compreensão. Começaram a aplicar a liberdade às suas necessidades. Queriam paz, então encerraram a guerra, antes de qualquer outra coisa. Só meses depois o Governo Bolchevique assinou o tratado de Brest-Litovski e concluiu oficialmente a paz com a Alemanha. Mas, no que diz respeito aos exércitos russos, a guerra já havia terminado muito antes, sem negociações diplomáticas. Trotsky admite isso francamente em sua obra sobre a Revolução.[11]

Os trabalhadores e camponeses russos, temporariamente com uniformes de soldados, tomaram a situação em suas próprias mãos e encerraram a guerra abandonando as frentes.

Da mesma forma agiram os camponeses e o proletariado na solução dos problemas industriais e agrários. Enquanto o Governo Provisório ainda discutia reformas agrárias, as massas agiram por conta própria, por meio de seus conselhos locais e sovietes. Os camponeses tomaram as terras de que precisavam e começaram a cultivá-las. Com o senso comum e a justiça popular inata, resolveram a questão agrária sobre a qual políticos e legisladores vinham quebrando a cabeça havia muitas décadas sem alcançar resultado. Os bolcheviques, quando chegaram ao poder, “legalizaram” o que os camponeses já haviam realizado sem pedir permissão a ninguém.

De forma semelhante, os sovietes de trabalhadores começaram a resolver o problema industrial ao assumir o controle das fábricas e minas, administrando-as para o bem comum, e não para o lucro dos “proprietários”. Isso foi a abolição de fato do capitalismo e da escravidão assalariada, muito antes de o Governo Bolchevique declarar “legalmente” encerrada a propriedade capitalista.

Todos os demais problemas da vida cotidiana estavam sendo resolvidos da mesma maneira pela atividade prática e direta das próprias massas. Organizações cooperativas aproximavam cidade e campo na troca de produtos; comitês de habitação cuidavam da questão das moradias; comitês de rua e de distrito eram organizados para a segurança da cidade, e outros corpos voluntários eram formados para a defesa dos interesses do povo e da Revolução.

As exigências da situação orientavam os esforços das massas; a liberdade de ação trazia à tona a iniciativa, e as necessidades do povo moldavam suas capacidades criativas às urgências do momento.

Essas atividades coletivas constituíam a Revolução. Eram a Revolução. Pois “revolução” não é algo vago, sem significado ou propósito definidos; tampouco significa troca de cenários políticos ou nova legislação. A Revolução real não ocorreu nem em fevereiro nem em outubro, mas entre esses meses. Consistiu na livre atuação e interação das energias e esforços revolucionários do povo, na iniciativa popular independente e na obra criativa inspirada por necessidades comuns e interesses mútuos.

Esse era o espírito e a tendência do grande abalo econômico e social na Rússia. Ele resolvia os problemas à medida que surgiam, com base na liberdade e na cooperação livre.

Esse processo da Revolução foi interrompido em seu desenvolvimento pela tomada do poder político pelo Partido Comunista, que se constituiu em novo governo.

Acabamos de ver qual era o objetivo da Revolução; sabemos o que as massas da Rússia queriam e quais os meios que utilizavam para alcançá-lo.

Os objetivos dos bolcheviques, como partido político, por outro lado, eram de natureza inteiramente diferente. Conforme admitem abertamente, seu objetivo imediato era a ditadura; isto é, a formação de um Estado bolchevique forte, que dirigisse a vida e as atividades do país segundo as concepções e teorias do Partido Comunista.

Para fazer justiça aos bolcheviques, devo dizer logo aqui que nunca houve um partido político mais devotado à sua causa, mais íntegro em seus esforços para promovê-la, mais determinado e enérgico na realização de seus propósitos. Mas esses propósitos eram totalmente alheios à Revolução e contrários às suas reais necessidades. Eram, de fato, tão contrários ao espírito e aos objetivos da Revolução que sua realização significou a destruição da própria Revolução.

Sem dúvida, os bolcheviques realmente acreditavam que apenas por meio de sua ditadura a Rússia poderia ser convertida em um paraíso socialista para o trabalhador e o camponês. Na verdade, como marxistas, não conseguiam ver de outra forma. Crentes num Estado todo-poderoso, não confiavam no povo; não tinham fé na iniciativa e capacidade criativa dos trabalhadores. Desconfiavam deles como uma “multidão multicolorida que precisa ser forçada à liberdade.” Concordavam com o cínico ditado de Rousseau de que as massas “só podem ser tornadas livres mediante a coerção.”

“A coerção proletária em todas as suas formas”, escreveu Bukharin, o principal teórico comunista, “começando pela execução sumária e terminando com o trabalho compulsório é, por mais paradoxal que soe, um método de reeducar o material humano da época capitalista em humanidade comunista.”

Esse era o evangelho bolchevique; era a postura de um partido que acreditava que uma revolução poderia ser conduzida por ordens de um Comitê Central.

O que se seguiu foi o desdobramento lógico da ideia bolchevique.

Afirmando que apenas a ditadura de seu Partido poderia conduzir adequadamente a Revolução, os bolcheviques concentraram todas as energias para assegurar essa ditadura. Isso significava que tinham que assumir tudo exclusivamente em suas mãos, realizar os desígnios do Partido a qualquer custo.

Não precisamos entrar nos detalhes das tramas e manipulações políticas daqueles dias que resultaram, por fim, na ascensão do Partido Comunista ao poder. O ponto importante é que os bolcheviques conseguiram executar seus planos. Poucos meses após a Revolução de Outubro, em abril de 1918, eles já controlavam completamente o governo.

Aproveitando-se da comoção dos dias revolucionários e da confusão inevitável, exploraram a situação para seus próprios objetivos. Usaram as divergências políticas para inflamar paixões partidárias, recorreram a todos os meios para denunciar seus opositores como inimigos do povo, tacharam-nos de contrarrevolucionários, e finalmente conseguiram difamá-los perante os olhos dos trabalhadores e soldados. Declarando que a Revolução precisava ser protegida contra esses supostos inimigos, puderam proclamar sua própria ditadura. Em nome de “salvar a Revolução”, começaram a eliminar todos os outros elementos revolucionários, não bolcheviques, das posições de influência, terminando por suprimi-los por completo.

Deve caber aos historiadores do futuro determinar se a repressão bolchevique à burguesia, com a qual iniciaram seu regime, não foi apenas um meio de alcançar o objetivo posterior de suprimir todos os outros elementos não bolcheviques. Pois a burguesia russa não era perigosa à Revolução. Como já foi explicado, era uma minoria insignificante, desorganizada e impotente. Os elementos revolucionários, ao contrário, eram um verdadeiro obstáculo à ditadura de qualquer partido político.

Como a ditadura encontraria sua mais forte oposição não na burguesia, mas nas classes verdadeiramente revolucionárias, que consideravam a ditadura nociva aos melhores interesses da Revolução, a eliminação dessas seria, portanto, de importância primordial para qualquer partido político que buscasse uma ditadura. Tal política, contudo, não poderia começar com sucesso pela repressão aos revolucionários: isso provocaria a desaprovação e a resistência dos trabalhadores e soldados. Teria que começar com a burguesia e encontrar meios de, gradualmente, estender a rede sobre os demais elementos. Seria necessário despertar desconfiança e antagonismo, estimular a intolerância e a perseguição, criar o medo popular pela segurança da Revolução para garantir o apoio do povo a uma campanha cada vez mais ampla de eliminação e repressão, para a introdução da mão sangrenta do terror vermelho na vida da Revolução.

Mas, como eu disse, cabe ao historiador do futuro determinar em que medida tais motivações moldaram os eventos daqueles dias. Aqui estamos mais interessados no que realmente aconteceu.

O que aconteceu foi que, em pouco tempo, os bolcheviques estabeleceram a ditadura exclusiva de seu Partido.

“O que foi essa ditadura”, você pergunta, “e o que ela alcançou?”


[11] 1917, de Leon Trotsky. Moscou, 1925.

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