Considero o anarquismo a concepção mais racional e prática de uma vida social baseada na liberdade e na harmonia. Estou convencido de que sua realização é uma certeza no curso do desenvolvimento humano.
O momento dessa realização dependerá de dois fatores: primeiro, de quão rapidamente as condições existentes se tornarão espiritual e fisicamente insuportáveis para parcelas significativas da humanidade, particularmente para as classes trabalhadoras; e, segundo, do grau em que as ideias anarquistas serão compreendidas e aceitas.
Nossas instituições sociais estão fundadas em certas ideias; enquanto essas ideias forem geralmente aceitas, as instituições construídas sobre elas estarão seguras. O governo permanece forte porque as pessoas acreditam que a autoridade política e a coerção legal são necessárias. O capitalismo continuará enquanto tal sistema econômico for considerado adequado e justo. O enfraquecimento das ideias que sustentam as condições atuais, marcadas pelo mal e pela opressão, significa o colapso final do governo e do capitalismo. O progresso consiste em abolir aquilo que a humanidade já superou e substituí-lo por um ambiente mais adequado.
Deve ser evidente, mesmo para o observador mais casual, que a sociedade está passando por uma transformação radical em suas concepções fundamentais. A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa são as principais causas disso. A guerra desmascarou o caráter perverso da competição capitalista e a criminosa incompetência dos governos em resolver disputas entre nações — ou melhor, entre as camarilhas financeiras dominantes. É porque o povo está perdendo a fé nos métodos antigos que as Grandes Potências agora se veem obrigadas a discutir a limitação de armamentos e até mesmo a proibição da guerra. Não faz muito tempo que a simples sugestão de tal possibilidade era recebida com extremo escárnio e ridicularização.
De maneira semelhante, a crença em outras instituições estabelecidas também está se desintegrando. O capitalismo ainda “funciona”, mas a dúvida sobre sua conveniência e justiça está corroendo o coração de círculos sociais cada vez mais amplos. A Revolução Russa disseminou ideias e sentimentos que estão minando a sociedade capitalista, particularmente suas bases econômicas e a santidade da propriedade privada dos meios de existência social. Pois não foi apenas na Rússia que a mudança de Outubro ocorreu: ela influenciou as massas em todo o mundo. A superstição, tão cara, de que o que existe é permanente foi abalada além de qualquer recuperação.
A guerra, a Revolução Russa e os desdobramentos do pós-guerra também contribuíram para desiludir vastas populações quanto ao socialismo. É literalmente verdade que, assim como o cristianismo, o socialismo conquistou o mundo ao derrotar a si próprio. Os partidos socialistas agora governam ou ajudam a governar a maioria dos países europeus, mas o povo já não acredita que eles sejam diferentes dos outros regimes burgueses. Sente-se que o socialismo falhou e está em bancarrota.
Da mesma forma, os bolcheviques provaram que o dogma marxista e os princípios leninistas só podem levar à ditadura e à reação.
Para os anarquistas, nada disso é surpreendente. Sempre afirmaram que o Estado é destrutivo para a liberdade individual e para a harmonia social, e que apenas a abolição da autoridade coercitiva e da desigualdade material pode resolver nossos problemas políticos, econômicos e nacionais. Mas seus argumentos, embora baseados na experiência milenar da humanidade, pareciam meramente teóricos para a geração atual — até que os acontecimentos das últimas duas décadas demonstraram, na prática, a veracidade da posição anarquista.
O colapso do socialismo e do bolchevismo abriu o caminho para o anarquismo.
Existe uma literatura considerável sobre o anarquismo, mas a maioria das obras mais extensas foi escrita antes da Primeira Guerra Mundial. A experiência do passado recente foi vital e tornou necessárias certas revisões na atitude e na argumentação anarquista. Embora as proposições básicas permaneçam as mesmas, alguns ajustes de aplicação prática são ditados pelos fatos da história atual. As lições da Revolução Russa, em particular, exigem uma nova abordagem para vários problemas importantes, entre eles o caráter e as atividades da revolução social.
Além disso, os livros anarquistas, com poucas exceções, não são acessíveis à compreensão do leitor médio. É uma falha comum da maioria das obras que tratam de questões sociais o fato de serem escritas partindo da suposição de que o leitor já está razoavelmente familiarizado com o assunto — o que geralmente não é o caso. Como resultado, existem muito poucos livros que tratam dos problemas sociais de maneira suficientemente simples e inteligível.
Por essa razão, considero muito necessária, neste momento, uma reafirmação da posição anarquista — uma reafirmação nos termos mais simples e claros possíveis, que possam ser compreendidos por todos. Ou seja, um ABC do Anarquismo.
Com esse objetivo, foram escritas as páginas seguintes.
Paris, 1928.
- Informações
- Prefácio
- Introdução
- Capítulo 1 — O que você quer da vida?
- Capítulo 2 — O sistema de salários
- Capítulo 3 — Lei e governo
- Capítulo 4 — Como o sistema funciona
- Capítulo 5 — Desemprego
- Capítulo 6 — Guerra?
- Capítulo 7 — Igreja e escola
- Capítulo 8 — Justiça
- Capítulo 9 — A igreja pode ajudá-lo?
- Capítulo 10 — O reformador e o político
- Capítulo 11 — O sindicato
- Capítulo 12 — De quem é o poder?
- Capítulo 13 — Socialismo
- Capítulo 14 — A Revolução de Fevereiro
- Capítulo 15 — Entre fevereiro e outubro
- Capítulo 16 — Os bolcheviques
- Capítulo 17 — Revolução e ditadura
- Capítulo 18 — A ditadura em ação
- Capítulo 19 — O anarquismo é violência?
- Capítulo 20 — O que é o anarquismo?
- Capítulo 21 — A anarquia é possível?
- Capítulo 22 — O anarquismo comunista vai funcionar?
- Capítulo 23 — Anarquistas não-comunistas
- Capítulo 24 — Por que a revolução?
- Capítulo 25 — A ideia é o essencial
- Capítulo 26 — Preparação
- Capítulo 27 — Organização do trabalho para a revolução social
- Capítulo 28 — Princípios e prática
- Capítulo 29 — Consumo e troca
- Capítulo 30 — Produção
- Capítulo 31 — Defesa da revolução