Capítulo 21 — A anarquia é possível?

“Talvez fosse possível,” você diz, “se pudéssemos viver sem governo. Mas podemos?”

Talvez possamos responder melhor à sua pergunta examinando sua própria vida.

Que papel o governo desempenha em sua existência? Ele ajuda você a viver? Alimenta, veste ou abriga você? Você precisa dele para trabalhar ou se divertir? Se está doente, chama o médico ou o policial? O governo pode lhe dar mais habilidades do que a natureza lhe concedeu? Pode salvá-lo da doença, da velhice ou da morte?

Considere sua vida diária e verá que, na realidade, o governo não é um fator nela, exceto quando começa a interferir em seus assuntos, quando o obriga a fazer certas coisas ou proíbe outras. Obriga você, por exemplo, a pagar impostos e a sustentá-lo, queira você ou não. Obriga você a vestir um uniforme e a se alistar no exército. Invade sua vida pessoal, dá ordens, coage você, prescreve seu comportamento e geralmente o trata como bem entende. Diz até mesmo no que você deve acreditar e o pune por pensar ou agir de outra maneira. Orienta você sobre o que comer e beber, e o prende ou fuzila se desobedecer. Ordena e domina cada passo de sua vida. Trata você como um menino malcriado ou uma criança irresponsável que precisa da mão forte de um guardião, mas, se você desobedecer, ainda assim o responsabiliza.

Consideraremos mais adiante os detalhes da vida sob a Anarquia e veremos que condições e instituições existirão nessa forma de sociedade, como funcionarão e que efeito provavelmente terão sobre o ser humano.

Por ora, queremos primeiro assegurar que tal condição é possível, que a Anarquia é praticável.

Qual é a existência do homem comum hoje? Quase todo o seu tempo é dedicado a ganhar o sustento. Você está tão ocupado em ganhar a vida que mal sobra tempo para viver, para desfrutar da vida. Nem o tempo, nem o dinheiro. Você se considera sortudo se tem alguma fonte de apoio, algum emprego. De tempos em tempos vem a crise: há desemprego e milhares são lançados fora do trabalho, todos os anos, em todos os países.

Esse tempo significa falta de renda, falta de salário. Resulta em preocupação e privação, em doenças, desespero e suicídio. Significa pobreza e crime. Para aliviar essa pobreza, construímos asilos de caridade, casas para pobres, hospitais gratuitos, tudo sustentado com seus impostos. Para prevenir o crime e punir os criminosos, novamente você tem que sustentar a polícia, os detetives, as forças estaduais, juízes, advogados, prisões, carcereiros. Pode imaginar algo mais insensato e impraticável? As legislaturas criam leis, os juízes as interpretam, vários oficiais as executam, a polícia persegue e prende o criminoso e, finalmente, o carcereiro o mantém sob custódia. Inúmeras pessoas e instituições ocupam-se em impedir o homem desempregado de roubar e o punem se tentar fazê-lo. Então lhe fornecem os meios de existência cuja falta o fez infringir a lei inicialmente. Depois de cumprir uma sentença, curta ou longa, ele é libertado. Se não conseguir trabalho, começa tudo de novo: roubo, prisão, julgamento e encarceramento.

Esta é uma ilustração, ainda que grosseira, do caráter estúpido de nosso sistema; estúpido e ineficiente. A lei e o governo sustentam esse sistema.

Não é curioso que a maioria das pessoas imagine que não poderíamos viver sem governo, quando, de fato, nossa vida real não tem nenhuma conexão com ele, nenhuma necessidade dele, e só é perturbada onde a lei e o governo interferem?

“Mas a segurança e a ordem pública,” você objeta, “seriam possíveis sem a lei e o governo? Quem nos protegeria contra o criminoso?”

A verdade é que o que se chama de “lei e ordem” é, na realidade, a pior desordem, como vimos em capítulos anteriores. A pouca ordem e paz que temos se devem ao bom senso e ao esforço conjunto das pessoas, em grande parte apesar do governo. Você precisa do governo para dizer que não deve atravessar na frente de um automóvel em movimento? Precisa que ele ordene que você não pule da Ponte do Brooklyn ou da Torre Eiffel?

O homem é um ser social: não pode existir sozinho; vive em comunidades ou sociedades. A necessidade mútua e os interesses comuns resultam em certos arranjos para garantir segurança e conforto. Essa cooperação é livre, voluntária; não precisa de compulsão de qualquer governo. Você se junta a um clube esportivo ou a uma sociedade de canto porque gosta, e coopera com os outros membros sem ser coagido. O cientista, o escritor, o artista e o inventor procuram seus semelhantes para inspiração e trabalho mútuo. Seus impulsos e necessidades são seus melhores estímulos: a interferência de qualquer governo ou autoridade só pode atrapalhar seus esforços.

Ao longo da vida, você verá que as necessidades e inclinações das pessoas favorecem a associação, a proteção e a ajuda mútua. Esta é a diferença entre administrar coisas e governar pessoas; entre fazer algo por escolha livre e ser compelido. É a diferença entre liberdade e coerção, entre Anarquismo e governo, porque o Anarquismo significa cooperação voluntária em vez de participação forçada. Significa harmonia e ordem em lugar de interferência e desordem.

“Mas quem nos protegerá contra o crime e os criminosos?” você insiste.

Antes, pergunte-se se o governo realmente nos protege deles. O governo não cria e mantém condições que favorecem o crime? A invasão e a violência nas quais todos os governos se baseiam não cultivam o espírito de intolerância, perseguição, ódio e mais violência? O crime não aumenta com o crescimento da pobreza e da injustiça promovidas pelo governo? O governo não é, ele próprio, a maior injustiça e crime?

O crime é resultado das condições econômicas, da desigualdade social, dos males e injustiças dos quais o governo e o monopólio são os pais. O governo e a lei só podem punir o criminoso. Não curam nem previnem o crime. A única verdadeira cura para o crime é abolir suas causas, e isso o governo nunca poderá fazer, pois existe justamente para preservar essas causas. O crime só poderá ser eliminado acabando-se com as condições que o criam. O governo não pode fazê-lo.

O Anarquismo propõe acabar com essas condições. Os crimes resultantes do governo, da opressão e injustiça, da desigualdade e da pobreza, desaparecerão sob a Anarquia. Estes constituem, de longe, a maior parte dos crimes.

Certos outros crimes persistirão por algum tempo, como os que resultam do ciúme, da paixão e do espírito de coerção e violência que hoje dominam o mundo. Mas estes, filhos da autoridade e da propriedade, também desaparecerão gradualmente em condições saudáveis, à medida que for superada a atmosfera que os cultivou.

A Anarquia, portanto, não gerará o crime nem oferecerá terreno fértil para seu florescimento. Atos ocasionais anti-sociais serão vistos como resquícios de condições e atitudes doentes do passado, e tratados como um estado mental doentio, e não como crime.

A Anarquia começaria alimentando o “criminoso” e garantindo-lhe trabalho, em vez de primeiro vigiá-lo, prendê-lo, julgá-lo e encarcerá-lo, terminando por alimentá-lo e também alimentar os muitos que precisam vigiá-lo. Certamente, mesmo esse exemplo já mostra como a vida seria muito mais sensata e simples sob o Anarquismo do que é hoje.

A verdade é que a vida atual é impraticável, complexa e confusa, e insatisfatória sob qualquer ponto de vista. Por isso há tanta miséria e descontentamento. O trabalhador não está satisfeito; nem o patrão é feliz com sua constante ansiedade diante das “crises” que ameaçam sua propriedade e poder. O espectro do medo do amanhã assombra pobres e ricos igualmente.

Certamente, o trabalhador não tem nada a perder com uma mudança do governo e do capitalismo para uma condição de ausência de governo, de Anarquia.

As classes médias também têm uma existência quase tão incerta quanto a dos trabalhadores. Dependem da boa vontade do fabricante e do atacadista, das grandes corporações de indústria e capital, e estão sempre ameaçadas de falência e ruína.

Mesmo o grande capitalista pouco teria a perder com a mudança do sistema atual para o da Anarquia, pois nesta todos teriam garantidos meios de vida e conforto; o medo da competição desapareceria com a abolição da propriedade privada. Cada um teria plena e livre oportunidade de viver e aproveitar sua vida ao máximo de sua capacidade.

Some-se a isso a consciência de paz e harmonia; o sentimento que nasce da liberdade em relação às preocupações financeiras ou materiais; a percepção de que você está em um mundo amigável, sem inveja ou rivalidade comercial para perturbar sua mente; em um mundo de irmãos, em uma atmosfera de liberdade e bem-estar geral.

É quase impossível conceber as maravilhosas oportunidades que se abririam para o ser humano em uma sociedade de Anarquismo Comunista. O cientista poderia dedicar-se plenamente às suas amadas pesquisas, sem se preocupar com o pão de cada dia. O inventor encontraria todas as facilidades à sua disposição para beneficiar a humanidade com suas descobertas e invenções. O escritor, o poeta, o artista — todos se elevariam nas asas da liberdade e da harmonia social a maiores alturas de realização.

Só então a justiça e o direito alcançariam sua verdadeira expressão. Não subestime o papel desses sentimentos na vida do homem ou da nação. Não vivemos apenas de pão. É verdade que a existência não é possível sem a satisfação das necessidades físicas. Mas a satisfação delas está longe de constituir toda a vida. Nosso atual sistema de civilização, ao deserdar milhões, tornou o estômago o centro do universo, por assim dizer. Mas em uma sociedade sensata, com abundância para todos, a mera existência, a segurança de um meio de vida, seria considerada tão evidente e livre quanto o ar. Os sentimentos de simpatia humana, de justiça e de direito teriam oportunidade de se desenvolver, de serem satisfeitos, de se expandir e crescer. Mesmo hoje o senso de justiça e de jogo limpo ainda vive no coração humano, apesar de séculos de repressão e perversão. Não foi exterminado e não pode ser exterminado, porque é inato, instintivo no ser humano, tão forte quanto o instinto de autopreservação e igualmente vital para nossa felicidade. Pois nem toda a miséria que temos no mundo hoje advém da falta de bem-estar material. O ser humano pode suportar melhor a fome do que a consciência da injustiça. A consciência de ser tratado injustamente pode incitar a protestos e revoltas tão rapidamente quanto a fome, talvez até mais. A fome pode ser a causa imediata de toda rebelião ou revolta, mas por trás dela está a antagonismo latente e o ódio das massas contra aqueles de cujas mãos sofrem injustiça e opressão. A verdade é que o direito e a justiça desempenham um papel muito mais importante em nossas vidas do que a maioria das pessoas imagina. Aqueles que negam isso conhecem tão pouco a natureza humana quanto a história. Na vida cotidiana, vemos constantemente as pessoas se indignarem com o que consideram uma injustiça. “Isso não está certo” é o protesto instintivo do ser humano quando sente que foi cometido um erro contra ele. Claro, a concepção de certo e errado de cada um depende de suas tradições, ambiente e criação. Mas, seja qual for sua concepção, seu impulso natural é resistir ao que considera errado e injusto.

Historicamente, o mesmo é verdade. Mais rebeliões e guerras foram travadas por ideias de justiça do que por razões materiais. Os marxistas podem objetar que nossas concepções de certo e errado são moldadas pelas condições econômicas, mas isso não altera o fato de que o senso de justiça e de direito sempre inspirou o ser humano ao heroísmo e ao auto-sacrifício em prol dos ideais.

Os Cristos e Budas de todas as eras não foram motivados por considerações materiais, mas por sua devoção à justiça e ao direito. Os pioneiros em todos os empreendimentos humanos sofreram calúnias, perseguições e até a morte, não por motivos de engrandecimento pessoal, mas por fé na justiça de suas causas. Os John Husses, os Luthers, os Brunos, os Savonarolas, os Galileus e inúmeros outros idealistas religiosos e sociais lutaram e morreram defendendo a causa da justiça como a viam. Da mesma forma, nos campos da ciência, filosofia, arte, poesia e educação, homens desde o tempo de Sócrates até os dias modernos devotaram suas vidas ao serviço da verdade e da justiça. No campo do progresso político e social, começando com Moisés e Espártaco, os mais nobres da humanidade consagraram-se aos ideais de liberdade e igualdade. Nem essa força motriz do idealismo se limita apenas a indivíduos excepcionais. As massas também sempre foram inspiradas por ela. A Guerra de Independência Americana, por exemplo, começou com a indignação popular nas Colônias contra a injustiça da tributação sem representação. As Cruzadas duraram duzentos anos numa tentativa de assegurar a Terra Santa para os cristãos. Esse ideal religioso inspirou seis milhões de homens, até mesmo exércitos de crianças, a enfrentar sofrimentos indizíveis, pestilência e morte em nome do direito e da justiça. Mesmo a recente Grande Guerra, embora capitalista em causa e resultado, foi travada por milhões de homens na sincera crença de que lutavam por uma causa justa, pela democracia e pelo fim de todas as guerras.

Assim, ao longo de toda a história, passada e moderna, o senso de justiça e direito inspirou o ser humano, individual e coletivamente, a feitos de auto-sacrifício e devoção, elevando-o muito acima da mesquinhez da existência cotidiana. É trágico, é claro, que esse idealismo tenha se expressado em atos de perseguição, violência e morticínio. Foram a corrupção e o egoísmo dos reis, sacerdotes e senhores, assim como a ignorância e o fanatismo, que moldaram essas expressões. Mas o espírito que as animou foi o da justiça e do direito. Toda a experiência passada prova que esse espírito está sempre vivo e é um fator poderoso e dominante em toda a escala da vida humana.

As condições de nossa existência atual enfraquecem e viciam essa mais nobre qualidade do ser humano, pervertem sua manifestação e a desviam para os canais da intolerância, da perseguição, do ódio e da luta. Mas uma vez libertado das influências corruptoras dos interesses materiais, elevado acima da ignorância e da luta de classes, o espírito inato de justiça e direito encontrará novas formas de expressão, formas que tenderão para a maior fraternidade e boa vontade, para a paz individual e a harmonia social.

Somente sob a Anarquia esse espírito poderá desenvolver-se plenamente. Libertado da degradante e brutal luta pela subsistência, com todos partilhando o trabalho e o bem-estar, as melhores qualidades do coração e da mente humanos terão a oportunidade de crescer e se aplicar beneficamente. O ser humano se tornaria de fato a nobre obra da natureza que até agora apenas vislumbrou em seus sonhos.

É por essas razões que a Anarquia é o ideal não apenas de um determinado elemento ou classe, mas de toda a humanidade, pois beneficiaria, no sentido mais amplo, a todos nós. O Anarquismo é a formulação de um desejo universal e perene da humanidade.

Cada homem e cada mulher, portanto, deveria estar vitalmente interessado em ajudar a trazer a Anarquia. Eles certamente o fariam se compreendessem a beleza e a justiça de uma nova vida. Todo ser humano que não esteja destituído de sentimento e de bom senso inclina-se instintivamente para o Anarquismo. Todo aquele que sofre com a injustiça, a corrupção e a podridão da vida atual sente simpatia instintiva pela Anarquia. Todo aquele cujo coração não esteja morto para a bondade, a compaixão e a solidariedade humana deve interessar-se em promovê-la. Todo aquele que sofre com a pobreza e a miséria, a tirania e a opressão deveria saudar a chegada da Anarquia. Todo homem e mulher que amam a liberdade e a justiça deveriam trabalhar para realizá-la.

E acima de tudo, os mais subjugados e oprimidos do mundo devem interessar-se nela. Aqueles que constroem palácios mas vivem em casebres; que põem a mesa da vida mas não são convidados a dela participar; que criam a riqueza do mundo mas são deserdados; que enchem a vida de alegria e luz, mas permanecem desprezados nas profundezas da escuridão; o Sansão da vida, despojado de sua força pela mão do medo e da ignorância; o gigante impotente do Trabalho, o proletariado de cérebro e músculo, as massas industriais e agrícolas — esses devem abraçar com mais alegria a Anarquia.

É a eles que o Anarquismo faz seu apelo mais forte; são eles que, antes de todos, devem trabalhar pelo novo dia que lhes devolverá a herança e trará liberdade e bem-estar, alegria e luz a toda a humanidade.

“Uma coisa esplêndida,” você observa; “mas funcionará? E como a alcançaremos?”

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