Como vimos no capítulo anterior, nenhuma vida pode ser livre e segura, harmoniosa e satisfatória, a menos que se baseie em princípios de justiça e equidade. O primeiro requisito da justiça é a liberdade e oportunidade iguais.
Sob o governo e a exploração, não pode haver nem liberdade igual nem oportunidade igual — daí todos os males e problemas da sociedade atual.
O anarquismo comunista se baseia na compreensão dessa verdade incontestável. Ele se fundamenta no princípio da não-invasão e da não-coerção; em outras palavras, na liberdade e oportunidade.
Uma vida baseada nesses princípios satisfaz plenamente as exigências da justiça. Você deve ser inteiramente livre, e todos os demais devem gozar da mesma liberdade, o que significa que ninguém tem o direito de compelir ou forçar outra pessoa, pois qualquer forma de coerção é uma interferência em sua liberdade.
Da mesma forma, a oportunidade igual é o patrimônio de todos. O monopólio e a propriedade privada dos meios de existência são, portanto, eliminados como uma restrição à igualdade de oportunidades de todos.
Se mantivermos em mente esse princípio simples de liberdade e oportunidade iguais, seremos capazes de resolver as questões envolvidas na construção de uma sociedade anarquista comunista.
Politicamente, então, o homem não reconhecerá nenhuma autoridade que possa forçá-lo ou coagi-lo. O governo será abolido.
Economicamente, ele não permitirá nenhuma posse exclusiva das fontes da vida, a fim de preservar sua oportunidade de acesso livre.
O monopólio da terra, a propriedade privada da maquinaria de produção, distribuição e comunicação não podem, portanto, ser tolerados sob a anarquia. A oportunidade de usar o que todos precisam para viver deve ser livre para todos.
Resumindo, o significado do anarquismo comunista é este: a abolição do governo, da autoridade coercitiva e de todas as suas agências, e a propriedade conjunta — o que significa participação livre e igualitária no trabalho geral e no bem-estar comum.
“Você disse que a anarquia asseguraria a igualdade econômica”, comenta seu amigo. “Isso significa pagamento igual para todos?”
Significa. Ou, o que dá no mesmo, participação igual no bem-estar público. Porque, como já sabemos, o trabalho é social. Nenhum homem pode criar algo sozinho, apenas com seus próprios esforços. Ora, se o trabalho é social, é lógico que seus resultados, a riqueza produzida, também devem ser sociais, pertencentes à coletividade. Nenhuma pessoa pode, portanto, reivindicar com justiça a propriedade exclusiva da riqueza social. Ela deve ser usufruída igualmente por todos.
“Mas por que não dar a cada um de acordo com o valor do seu trabalho?”, você pergunta.
Porque não há maneira de medir o valor. Essa é a diferença entre valor e preço. Valor é o que uma coisa vale, enquanto preço é o que ela pode ser vendida ou comprada no mercado. O que uma coisa realmente vale, ninguém pode dizer com certeza. Economistas políticos geralmente afirmam que o valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho necessário para produzi-la, o “trabalho socialmente necessário”, como diz Marx. Mas, evidentemente, isso não é uma medida justa. Suponha que o carpinteiro tenha trabalhado três horas para fazer uma cadeira de cozinha, enquanto o cirurgião levou apenas meia hora para realizar uma operação que salvou sua vida. Se a quantidade de trabalho utilizado determina o valor, então a cadeira vale mais que a sua vida. Um absurdo evidente, é claro. Mesmo que se contabilizem os anos de estudo e prática que o cirurgião precisou para ser capaz de realizar a operação, como você vai decidir quanto vale “uma hora de operação”? O carpinteiro e o pedreiro também precisaram de treinamento antes de poderem executar seu trabalho corretamente, mas você não considera esses anos de aprendizado ao contratá-los para um serviço. Além disso, deve-se considerar a habilidade e aptidão particulares que todo trabalhador, escritor, artista ou médico deve exercer em seus ofícios. Esse é um fator puramente individual, pessoal. Como você vai estimar seu valor?
É por isso que o valor não pode ser determinado. A mesma coisa pode valer muito para uma pessoa enquanto não vale nada ou muito pouco para outra. Pode valer muito ou pouco até para a mesma pessoa, em momentos diferentes. Um diamante, uma pintura ou um livro podem valer muito para um homem e muito pouco para outro. Um pão vai valer muito para você quando estiver com fome, e muito menos quando estiver saciado. Portanto, o valor real de uma coisa não pode ser determinado; é uma quantidade desconhecida.
Mas o preço é facilmente determinado. Se há cinco pães disponíveis e dez pessoas querendo um pão cada, o preço do pão subirá. Se houver dez pães e apenas cinco compradores, o preço cairá. O preço depende da oferta e da procura.
A troca de mercadorias por meio de preços leva à obtenção de lucros, ao aproveitamento e à exploração; em suma, a alguma forma de capitalismo. Se você elimina os lucros, não pode haver nenhum sistema de preços, nem qualquer sistema de salários ou pagamento. Isso significa que a troca deve ser feita de acordo com o valor. Mas como o valor é incerto ou não pode ser determinado, a troca deve, consequentemente, ser livre, sem “valor igual”, já que tal coisa não existe. Em outras palavras, o trabalho e seus produtos devem ser trocados sem preço, sem lucro, livremente, conforme a necessidade. Isso leva logicamente à propriedade comum e ao uso conjunto. O que é um sistema sensato, justo e equitativo, conhecido como comunismo.
“Mas é justo que todos compartilhem igualmente?”, você exige. “O homem inteligente e o medíocre, o eficiente e o ineficiente, todos iguais? Não deveria haver distinção, nenhum reconhecimento especial para os capazes?”
Permita-me perguntar, meu amigo, devemos punir o homem a quem a natureza não dotou tão generosamente quanto ao seu vizinho mais forte ou talentoso? Devemos somar injustiça à limitação que a natureza impôs a ele? Tudo o que podemos esperar razoavelmente de qualquer homem é que ele dê o seu melhor — alguém pode fazer mais do que isso? E se o melhor de João não é tão bom quanto o de seu irmão José, isso é um infortúnio, mas de forma alguma uma falha a ser punida.
Não há nada mais perigoso do que a discriminação. No momento em que você começa a discriminar os menos capazes, estabelece condições que geram insatisfação e ressentimento: você convida a inveja, a discórdia e o conflito. Você acharia brutal negar ao menos capaz o ar ou a água de que precisa. O mesmo princípio não deveria se aplicar às outras necessidades humanas? Afinal, alimentação, vestuário e abrigo são os menores itens na economia mundial.
A forma mais segura de fazer alguém dar o seu melhor não é discriminando contra ele, mas tratando-o em pé de igualdade com os outros. Isso é o incentivo e estímulo mais eficaz. É justo e humano.
“Mas o que fazer com o preguiçoso, o homem que não quer trabalhar?”, pergunta seu amigo.
Essa é uma pergunta interessante, e você provavelmente ficará muito surpreso quando eu disser que, na verdade, não existe tal coisa como preguiça. O que chamamos de homem preguiçoso é geralmente um homem quadrado num buraco redondo. Ou seja, o homem certo no lugar errado. E você sempre verá que, quando alguém está no lugar errado, será ineficiente ou negligente. Pois a chamada preguiça e uma boa dose de ineficiência são apenas inadequação, má alocação. Se você é obrigado a fazer algo para o qual não tem aptidão ou disposição, será ineficiente nisso; se for forçado a fazer um trabalho que não lhe interessa, será preguiçoso nele.
Qualquer pessoa que tenha administrado atividades com grande número de empregados pode confirmar isso. A vida na prisão é uma prova particularmente convincente dessa verdade — e, afinal, a existência atual para a maioria das pessoas é a de uma prisão ampliada. Todo diretor de prisão lhe dirá que os internos designados para tarefas para as quais não têm habilidade ou interesse são sempre preguiçosos e sujeitos a punições constantes. Mas assim que esses “presos rebeldes” são colocados em funções que lhes agradam, tornam-se “modelos de comportamento”, como os carcereiros os chamam.
A Rússia também demonstrou isso de forma notável. Mostrou como sabemos pouco sobre as potencialidades humanas e o efeito do ambiente sobre elas — como confundimos más condições com má conduta. Refugiados russos, levando uma vida miserável e insignificante em países estrangeiros, ao retornarem para casa e encontrarem na Revolução um campo apropriado para suas atividades, realizaram trabalhos maravilhosos em sua área certa, tornando-se brilhantes organizadores, construtores de ferrovias e criadores de indústrias. Entre os nomes russos mais conhecidos no exterior hoje estão os de homens considerados negligentes e ineficientes sob condições em que sua capacidade e energia não podiam ser aplicadas adequadamente.
Essa é a natureza humana: eficiência em determinada direção significa inclinação e capacidade para ela; empenho e dedicação significam interesse. É por isso que há tanta ineficiência e preguiça no mundo de hoje. Pois quem, de fato, está atualmente no lugar certo? Quem trabalha naquilo que realmente gosta e tem interesse?
Nas condições atuais, o homem comum tem pouca escolha para se dedicar às tarefas que correspondam às suas inclinações e preferências. O acaso do nascimento e da posição social geralmente predeterminam o ofício ou a profissão. O filho do financista, em regra, não se torna lenhador, embora possa ter mais aptidão para manejar toras do que contas bancárias. As classes médias enviam seus filhos para faculdades que os transformam em médicos, advogados ou engenheiros. Mas, se seus pais eram trabalhadores que não puderam pagar seus estudos, as chances são de que você aceitará qualquer emprego que lhe for oferecido ou ingressará em alguma profissão que permita um aprendizado. Sua situação particular decidirá seu trabalho ou profissão, e não suas preferências naturais, inclinações ou habilidades. Será de se admirar, então, que a maioria das pessoas — de fato, a esmagadora maioria — esteja deslocada? Pergunte aos primeiros cem homens que encontrar se eles teriam escolhido o trabalho que fazem ou se continuariam nele se fossem livres para escolher, e noventa e nove admitirão que prefeririam outra ocupação. A necessidade e as vantagens materiais — ou a esperança delas — mantêm a maioria das pessoas no lugar errado.
É lógico que uma pessoa só pode dar o melhor de si quando se interessa pelo seu trabalho, quando sente uma atração natural por ele, quando gosta do que faz. Então ela será industriosa e eficiente. As coisas produzidas pelos artesãos antes do capitalismo moderno eram objetos de alegria e beleza, porque o artesão amava o seu trabalho. Você pode esperar que o operário moderno, num feio e enorme fábrica, produza coisas belas? Ele é parte da máquina, uma engrenagem da indústria sem alma, seu trabalho é mecânico, forçado. Some-se a isso o sentimento de que ele não trabalha para si, mas para o benefício de outra pessoa, e que odeia o seu trabalho ou, na melhor das hipóteses, não tem interesse nele além do salário semanal que assegura. O resultado é negligência, ineficiência, preguiça.
A necessidade de atividade é um dos impulsos mais fundamentais do homem. Observe a criança e veja quão forte é seu instinto para agir, para se mover, para fazer algo. Forte e contínuo. O mesmo acontece com o homem saudável. Sua energia e vitalidade exigem expressão. Permita-lhe fazer o trabalho de sua escolha, aquilo que ama, e sua dedicação não conhecerá cansaço nem desleixo. Você pode observar isso no operário que tem a sorte de possuir um jardim ou um pedaço de terra para cultivar flores ou vegetais. Cansado de seu trabalho diário, ainda assim ele desfruta do trabalho mais pesado quando é para seu próprio benefício, realizado por livre escolha.
Sob o anarquismo, cada um terá a oportunidade de seguir a ocupação que mais corresponda às suas inclinações naturais e aptidão. O trabalho se tornará um prazer, em vez da rotina esmagadora que é hoje. A preguiça será desconhecida, e as coisas criadas por interesse e amor serão objetos de beleza e alegria.
“Mas o trabalho pode realmente se tornar um prazer?”, você pergunta.
O trabalho é penoso hoje, desagradável, exaustivo e cansativo. Mas, geralmente, não é o trabalho em si que é tão difícil: são as condições sob as quais você é forçado a trabalhar que o tornam assim. Particularmente as longas jornadas, os ambientes insalubres, o mau tratamento, o pagamento insuficiente e assim por diante. Ainda assim, o trabalho mais desagradável poderia ser aliviado melhorando o ambiente. Tome, por exemplo, a limpeza de sarjetas. É um trabalho sujo e mal remunerado. Mas suponha que você recebesse 20 dólares por dia, em vez de 5 dólares, para esse trabalho. Imediatamente você acharia sua tarefa muito mais leve e agradável. O número de candidatos ao trabalho aumentaria de imediato. Isso mostra que os homens não são preguiçosos nem têm medo do trabalho duro e desagradável, se este for adequadamente recompensado. Mas tal trabalho é considerado servil e desprezado. Por quê? Acaso não é extremamente útil e absolutamente necessário? Epidemias não varreriam nossas cidades se não fosse pelos limpadores de ruas e sarjetas? Sem dúvida, os homens que mantêm nossa cidade limpa e sanitária são verdadeiros benfeitores, mais importantes para nossa saúde e bem-estar do que o médico de família. Do ponto de vista da utilidade social, o limpador de ruas é colega profissional do médico: este nos trata quando estamos doentes, aquele nos ajuda a permanecer saudáveis. No entanto, o médico é respeitado e admirado, enquanto o limpador de ruas é desprezado. Por quê? Porque ganha pouco.
Em nossa civilização perversa, as coisas são valorizadas de acordo com padrões monetários. As pessoas que fazem o trabalho mais útil ocupam os escalões mais baixos da escala social quando sua ocupação é mal remunerada. Se algo acontecesse e o limpador de ruas passasse a ganhar 100 dólares por dia, enquanto o médico recebesse menos, o “sujo” limpador de ruas seria imediatamente elevado na consideração social e passaria de “trabalhador imundo” a homem de renda respeitável e desejado.
Você vê, portanto, que é o pagamento, a remuneração, a escala salarial — e não o mérito ou valor real — que, hoje, sob o sistema de lucro, determina o valor do trabalho e o “valor” do homem.
Uma sociedade sensata — sob condições anarquistas — teria padrões totalmente diferentes para julgar essas questões. As pessoas seriam apreciadas de acordo com sua disposição para ser socialmente úteis.
Você consegue perceber que grandes mudanças essa nova atitude produziria? Todo mundo anseia pelo respeito e admiração de seus semelhantes; é um tônico sem o qual não podemos viver. Até mesmo na prisão, eu vi como o batedor de carteiras ou o arrombador de cofres almeja a estima de seus companheiros e como se esforça para conquistá-la. As opiniões do nosso círculo social moldam nosso comportamento. A atmosfera social determina, em grande medida, nossos valores e atitudes. Sua experiência pessoal lhe dirá quão verdadeira é essa afirmação e, portanto, você não se surpreenderá quando eu disser que, numa sociedade anarquista, será o trabalho mais útil e difícil que os homens buscarão, em vez do trabalho mais leve. Se você refletir sobre isso, não terá mais medo da preguiça ou da negligência.
Mas as tarefas mais árduas e penosas poderiam ser tornadas muito mais fáceis e limpas do que são hoje. O empregador capitalista não se importa em gastar dinheiro, se puder evitar, para tornar o trabalho dos seus empregados mais agradável. Ele introduz melhorias apenas quando espera obter lucros maiores, mas não se dará ao trabalho de gastar por razões puramente humanitárias. Ainda assim, devo lembrar que os empregadores mais inteligentes estão começando a perceber que vale a pena melhorar as condições de suas fábricas, torná-las mais sanitárias e higiênicas, e em geral melhorarem as condições de trabalho. Eles percebem que isso é um bom investimento: resulta em maior contentamento e, consequentemente, maior eficiência dos trabalhadores. O princípio é correto. Hoje, é claro, ele é explorado apenas para obter maiores lucros. Mas, sob o anarquismo, ele seria aplicado não em benefício pessoal, mas no interesse da saúde dos trabalhadores e para aliviar o trabalho. Nosso progresso na mecânica é tão grande e continua a avançar tanto que a maior parte do trabalho pesado poderia ser eliminada pelo uso de máquinas modernas e dispositivos que economizam trabalho. Em muitas indústrias, como a mineração de carvão, por exemplo, novos dispositivos de segurança e higiene não são introduzidos devido à indiferença dos patrões pelo bem-estar dos empregados e pelo custo envolvido. Mas, num sistema sem fins lucrativos, a ciência técnica trabalharia exclusivamente com o objetivo de tornar o trabalho mais seguro, saudável, leve e agradável.
“Mas, por mais leve que você torne o trabalho, oito horas por dia nunca será prazeroso”, objeta seu amigo.
Você está absolutamente certo. Mas já parou para pensar por que temos que trabalhar oito horas por dia? Você sabia que, até pouco tempo atrás, as pessoas trabalhavam doze e quatorze horas por dia, e que isso ainda acontece em países atrasados como China e Índia?
Pode-se provar estatisticamente que três horas de trabalho diário, no máximo, seriam suficientes para alimentar, abrigar e vestir o mundo, e ainda fornecer a todos não apenas o necessário, mas também todo o conforto moderno. A questão é que hoje nem um em cada cinco homens realiza qualquer trabalho produtivo. Todo o mundo é sustentado por uma pequena minoria de trabalhadores.
Antes de tudo, considere a quantidade de trabalho realizado atualmente que se tornaria desnecessária sob o anarquismo. Pense nos exércitos e marinhas do mundo, e quantos milhões de homens seriam liberados para esforços úteis e produtivos uma vez que a guerra fosse abolida, como naturalmente seria sob a anarquia.
Em cada país hoje, o trabalho sustenta milhões de pessoas que nada contribuem para o bem-estar do país, que nada criam e não realizam nenhum trabalho útil. Esses milhões são apenas consumidores, sem serem produtores. Nos Estados Unidos, por exemplo, de uma população de 120 milhões, há menos de 30 milhões de trabalhadores, agricultores incluídos.[16] Situação semelhante é a regra em todos os países.
É de se admirar que os trabalhadores tenham que se esforçar longas horas, já que há apenas 30 trabalhadores para cada 120 pessoas? As grandes classes comerciais, com seus empregados, agentes e viajantes comerciais; os tribunais com seus juízes, escrivães, oficiais de justiça, etc.; a legião de advogados com suas equipes; as milícias e as forças policiais; as igrejas e mosteiros; as instituições de caridade e casas de pobres; as prisões com seus carcereiros, oficiais e a população carcerária improdutiva; o exército de publicitários e seus auxiliares, cuja função é persuadi-lo a comprar o que você não precisa nem deseja, sem falar dos numerosos elementos que vivem no luxo e na ociosidade completa. Todos esses montam aos milhões em cada país.
Ora, se todos esses milhões se aplicassem a um trabalho útil, os trabalhadores precisariam se esforçar oito horas por dia? Se 30 homens precisam trabalhar oito horas para realizar uma tarefa, quanto menos tempo levaria 120 homens para realizar o mesmo trabalho? Não quero sobrecarregá-lo com estatísticas, mas há dados suficientes para provar que menos de 3 horas de esforço físico diário seriam suficientes para realizar o trabalho mundial.
Você pode duvidar de que mesmo o trabalho mais pesado se tornaria um prazer, em vez da escravidão maldita que é hoje, se apenas três horas por dia fossem exigidas, e isso nas condições mais sanitárias e higiênicas, em uma atmosfera de fraternidade e respeito pelo trabalho?
Mas não é difícil prever o dia em que até mesmo essas poucas horas serão ainda mais reduzidas. Pois estamos constantemente aprimorando nossos métodos técnicos, e novas máquinas que economizam trabalho estão sendo inventadas o tempo todo. O progresso mecânico significa menos trabalho e maiores confortos, como você pode ver ao comparar a vida nos Estados Unidos com a da China ou da Índia. Nestes últimos, trabalha-se longas horas para garantir o mínimo necessário à existência, enquanto na América até o operário médio desfruta de um padrão de vida muito mais elevado com menos horas de trabalho. O avanço da ciência e da invenção significa mais lazer para as atividades que amamos.
Esbocei em traços largos e amplos as possibilidades da vida sob um sistema sensato em que o lucro é abolido. Não é necessário entrar nos detalhes minuciosos de tal condição social: o que foi dito já basta para mostrar que o anarquismo comunista significa o maior bem-estar material com uma vida de liberdade para todos.
Podemos vislumbrar o tempo em que o trabalho se tornará um exercício prazeroso, uma aplicação alegre do esforço físico às necessidades do mundo. O homem então olhará para o nosso presente e se perguntará como o trabalho pôde ter sido uma escravidão, e questionará a sanidade de uma geração que permitiu que menos de um quinto de sua população ganhasse o pão para o restante com o suor de seu rosto, enquanto os outros desperdiçavam seu tempo, sua saúde e a riqueza do povo. Eles se surpreenderão que a mais livre satisfação das necessidades humanas tenha sido considerada algo além do autoevidente, ou que pessoas naturalmente buscando os mesmos objetivos insistissem em tornar a vida difícil e miserável por meio da luta mútua. Recusar-se-ão a acreditar que a existência humana foi uma luta contínua por alimento em um mundo rico em luxos, uma luta que deixou a grande maioria sem tempo nem forças para a busca mais elevada do coração e da mente.
“Mas a vida sob a Anarquia, com igualdade econômica e social, não significará nivelamento geral?”, você pergunta.
Não, meu amigo, muito pelo contrário. Porque igualdade não significa quantidade igual, mas igualdade de oportunidade. Não significa, por exemplo, que se Smith precisa de cinco refeições por dia, Johnson também deva ter tantas. Se Johnson quer apenas três refeições enquanto Smith requer cinco, a quantidade que cada um consome pode ser desigual, mas ambos são perfeitamente iguais na oportunidade que têm de consumir o quanto precisarem, de acordo com suas respectivas naturezas.
Não cometa o erro de identificar igualdade em liberdade com a igualdade forçada do campo de prisioneiros. A verdadeira igualdade anarquista implica liberdade, não quantidade. Não significa que todos devem comer, beber ou vestir as mesmas coisas, fazer o mesmo trabalho ou viver da mesma maneira. Muito pelo contrário.
As necessidades e gostos individuais diferem, assim como diferem os apetites. É a igualdade de oportunidade para satisfazê-los que constitui a verdadeira igualdade.
Longe de nivelar, tal igualdade abre as portas para a maior variedade possível de atividade e desenvolvimento. Pois o caráter humano é diverso, e apenas a repressão dessa diversidade resulta em nivelamento, uniformidade e mesmice. A livre oportunidade de expressar e manifestar sua individualidade promove o desenvolvimento das diferenças e variações naturais.
Diz-se que não existem duas folhas de grama iguais. Muito menos ainda existem dois seres humanos iguais. No mundo inteiro não há duas pessoas exatamente semelhantes nem em aparência física; muito menos em sua constituição fisiológica, mental e psíquica. No entanto, apesar dessa diversidade e de milhares de diferenciações de caráter, obrigamos as pessoas a serem iguais hoje. Nossa vida e costumes, nosso comportamento e maneiras, até nossos pensamentos e sentimentos são moldados em um padrão uniforme. O espírito de autoridade, a lei escrita e não escrita, a tradição e o costume nos forçam a seguir uma mesma trilha e fazem do homem um autômato sem vontade própria, sem independência ou individualidade. Essa escravidão moral e intelectual é mais opressiva que qualquer coerção física, mais devastadora para nosso desenvolvimento e dignidade. Todos nós somos suas vítimas, e apenas os excepcionalmente fortes conseguem romper suas correntes — e mesmo assim, apenas parcialmente.
A autoridade do passado e do presente dita não apenas nosso comportamento, mas domina nossas mentes e almas, trabalhando continuamente para sufocar todo sintoma de inconformismo, de atitude independente e opinião não ortodoxa. Todo o peso da condenação social recai sobre a cabeça daquele homem ou mulher que ousa desafiar os códigos convencionais. A vingança é impiedosa contra o protestante que se recusa a seguir o caminho traçado ou contra o herege que desacredita nas fórmulas aceitas. Em ciência e arte, em literatura, poesia e pintura, esse espírito obriga à adaptação e ajustamento, resultando em imitação do estabelecido e aprovado, em uniformidade e mesmice, em expressão estereotipada. Mas a punição é ainda mais severa no caso do inconformismo na vida prática, nas relações e comportamentos do dia a dia. O pintor e o escritor podem, ocasionalmente, ser perdoados por sua rebeldia contra o costume e a tradição porque, afinal, sua rebeldia se limita ao papel ou à tela: afeta apenas um círculo relativamente pequeno. Eles podem ser ignorados ou rotulados de excêntricos inofensivos. Mas não o homem de ação que leva seu desafio aos padrões aceitos para a vida social. Este não é inofensivo. Ele é perigoso pelo poder do exemplo, por sua simples presença. Sua infração aos cânones sociais não pode ser ignorada nem perdoada. Ele será denunciado como inimigo da sociedade.
É por isso que sentimentos ou pensamentos revolucionários expressos em poesia exótica ou mascarados em dissertações filosóficas eruditas podem ser tolerados e passar pela censura oficial e não oficial, porque não são acessíveis nem compreendidos pelo grande público. Mas dê voz à mesma atitude dissidente de maneira popular, e você enfrentará imediatamente a fúria de todas as forças que defendem a preservação do estabelecido.
A conformidade compulsória é mais nociva e mortífera do que o veneno mais virulento. Através dos séculos, ela tem sido o maior obstáculo ao avanço humano, cercando-o com mil proibições e tabus, sobrecarregando sua mente e seu coração com códigos e cânones ultrapassados, tolhendo sua vontade com imperativos de pensamento e sentimento, com “não deves” e “não podes” de comportamento e ação. A vida, a arte de viver, tornou-se uma fórmula estéril, monótona e inerte.
Mesmo assim, tão forte é a diversidade inata da natureza humana que séculos de sufocamento não conseguiram erradicar completamente sua originalidade e singularidade. É verdade que a grande maioria caiu em sulcos tão profundos que não consegue mais sair para os espaços abertos. Mas alguns conseguem romper o caminho batido e encontrar a estrada aberta onde novas paisagens de beleza e inspiração chamam o coração e o espírito. Esses são condenados pelo mundo, mas pouco a pouco o mundo segue seus exemplos e suas lideranças, até que finalmente se iguala a eles. Nesse meio tempo, esses pioneiros já foram muito além ou morreram, e então erguemos monumentos a eles e glorificamos aqueles que vilipendiamos e crucificamos, enquanto continuamos crucificando seus irmãos de espírito, os pioneiros de nosso próprio tempo.
Por trás desse espírito de intolerância e perseguição está o hábito da autoridade: a coerção para a conformidade aos padrões dominantes, a compulsão — moral e legal — para ser e agir como os outros, segundo o precedente e a regra.
Mas a crença geral de que a conformidade é uma característica natural é totalmente falsa. Ao contrário, dada a menor oportunidade, sem os hábitos mentais incutidos desde o berço, o homem demonstra originalidade e singularidade. Observe as crianças, por exemplo, e você verá a mais variada diferenciação de comportamento e atitude, de expressão mental e psíquica. Você descobrirá uma tendência instintiva à individualidade e independência, à não conformidade, manifestada na aberta e secreta resistência à vontade imposta de fora, na rebeldia contra a autoridade dos pais e professores. Todo o treinamento e “educação” da criança são um processo contínuo de sufocamento e esmagamento dessa tendência, da erradicação de suas características distintivas, de sua diferença em relação aos outros, de sua personalidade e originalidade. E mesmo assim, apesar de anos de repressão e modelagem, alguma originalidade persiste quando a criança atinge a maturidade, o que mostra quão profundas são as raízes da individualidade. Pegue, por exemplo, duas pessoas que testemunharam um grande incêndio no mesmo tempo e local. Cada uma contará a história de maneira diferente, cada uma será original em seu modo de narrá-la e na impressão que causará, devido às suas diferentes psicologias naturais. Mas converse com essas mesmas duas pessoas sobre algum tema social fundamental, como a vida ou o governo, e imediatamente ouvirá expressar uma atitude idêntica, o ponto de vista aceito, a mentalidade dominante.
Por quê? Porque, onde o homem é deixado livre para pensar e sentir por si mesmo, sem imposições e sem o temor de ser “diferente” ou “não ortodoxo” — e sem as consequências desagradáveis que isso acarretaria — ele será independente e livre. Mas no momento em que a conversa toca em assuntos dentro da esfera dos imperativos sociais, ele é capturado pelos tabus e se torna uma cópia, um papagaio.
A vida em liberdade, sob a anarquia, fará mais do que libertar o homem apenas de sua atual servidão política e econômica. Isso será apenas o primeiro passo, o preliminar para uma existência verdadeiramente humana. Muito maiores e mais significativos serão os resultados dessa liberdade, seus efeitos sobre a mente humana e a personalidade. A abolição da vontade coercitiva externa e, com ela, do medo da autoridade, romperá as amarras da compulsão moral, tanto quanto as da compulsão econômica e física. O espírito humano respirará livremente, e essa emancipação mental será o nascimento de uma nova cultura, de uma nova humanidade. Imperativos e tabus desaparecerão, e o homem começará a ser ele mesmo, a desenvolver e expressar suas tendências individuais e sua singularidade. Em vez do “não deves”, a consciência pública dirá: “podes, assumindo plena responsabilidade”. Isso será um treinamento em dignidade humana e autoconfiança, começando no lar e na escola, que produzirá uma nova raça com uma nova atitude diante da vida.
O homem do futuro verá e sentirá a existência em um plano inteiramente novo. Para ele, viver será uma arte e uma alegria. Ele deixará de considerar a vida como uma corrida em que todos devem tentar ser tão rápidos quanto o mais veloz. Ele verá o lazer como mais importante do que o trabalho, e o trabalho ocupará seu devido lugar subordinado como meio para o lazer e para o aproveitamento da vida.
A vida significará a busca por valores culturais mais elevados, a penetração dos mistérios da natureza, a conquista de verdades superiores. Livre para exercer as possibilidades ilimitadas de sua mente, para perseguir seu amor pelo conhecimento, para aplicar seu gênio inventivo, para criar e voar nas asas da imaginação, o homem atingirá sua plena estatura e se tornará verdadeiramente homem. Ele crescerá e se desenvolverá de acordo com sua natureza. Ele desprezará a uniformidade, e a diversidade humana lhe trará um interesse maior e um sentimento mais profundo da riqueza do ser. A vida, para ele, não consistirá apenas em funcionar, mas em viver, e ele alcançará o mais elevado tipo de liberdade de que o homem é capaz: a liberdade na alegria.
“Esse dia está muito distante”, você diz; “como poderemos alcançá-lo?”
Distante, talvez; mas talvez nem tanto — ninguém pode dizer. De qualquer forma, devemos sempre manter nosso objetivo final em vista se quisermos permanecer no caminho certo. A mudança que descrevi não ocorrerá da noite para o dia; nada ocorre assim. Será um desenvolvimento gradual, como tudo na natureza e na vida social. Mas será um desenvolvimento lógico, necessário e, ouso dizer, inevitável. Inevitável, porque toda a tendência do crescimento humano tem seguido nessa direção; mesmo que em ziguezagues, frequentemente perdendo o caminho, sempre acaba retornando à trilha correta.
Como, então, ela poderá ser realizada?
[16] Almanaque Mundial de Nova York, 1927.
- Informações
- Prefácio
- Introdução
- Capítulo 1 — O que você quer da vida?
- Capítulo 2 — O sistema de salários
- Capítulo 3 — Lei e governo
- Capítulo 4 — Como o sistema funciona
- Capítulo 5 — Desemprego
- Capítulo 6 — Guerra?
- Capítulo 7 — Igreja e escola
- Capítulo 8 — Justiça
- Capítulo 9 — A igreja pode ajudá-lo?
- Capítulo 10 — O reformador e o político
- Capítulo 11 — O sindicato
- Capítulo 12 — De quem é o poder?
- Capítulo 13 — Socialismo
- Capítulo 14 — A Revolução de Fevereiro
- Capítulo 15 — Entre fevereiro e outubro
- Capítulo 16 — Os bolcheviques
- Capítulo 17 — Revolução e ditadura
- Capítulo 18 — A ditadura em ação
- Capítulo 19 — O anarquismo é violência?
- Capítulo 20 — O que é o anarquismo?
- Capítulo 21 — A anarquia é possível?
- Capítulo 22 — O anarquismo comunista vai funcionar?
- Capítulo 23 — Anarquistas não-comunistas
- Capítulo 24 — Por que a revolução?
- Capítulo 25 — A ideia é o essencial
- Capítulo 26 — Preparação
- Capítulo 27 — Organização do trabalho para a revolução social
- Capítulo 28 — Princípios e prática
- Capítulo 29 — Consumo e troca
- Capítulo 30 — Produção
- Capítulo 31 — Defesa da revolução