Voltemos à sua pergunta: “Como o anarquismo surgirá? Podemos ajudar a promovê-lo?”
Esse é um ponto dos mais importantes, porque em todo problema há duas questões vitais: primeiro, saber claramente o que se quer; segundo, como alcançar isso.
Já sabemos o que queremos. Queremos condições sociais em que todos sejam livres e em que cada um tenha a mais plena oportunidade de satisfazer suas necessidades e aspirações, com base na liberdade igual para todos. Em outras palavras, estamos lutando pela comunidade cooperativa livre do anarquismo comunista.
Como isso acontecerá?
Não somos profetas, e ninguém pode dizer exatamente como as coisas acontecerão. Mas o mundo não existe desde ontem; e o homem, como ser racional, deve aprender com a experiência do passado.
Ora, qual é essa experiência? Se você olhar a história verá que toda a vida humana tem sido uma luta pela existência. Em seu estado primitivo, o homem enfrentava sozinho as feras da floresta, e enfrentava, indefeso, a fome, o frio, a escuridão e as tempestades. Por causa de sua ignorância, todas as forças da natureza eram suas inimigas: elas lhe traziam o mal e a destruição, e ele, sozinho, era impotente para combatê-las. Mas pouco a pouco o homem aprendeu a se unir a outros como ele; juntos, buscavam segurança. Por esforço conjunto, começaram a transformar as energias da natureza em seu benefício. A ajuda mútua e a cooperação multiplicaram gradualmente a força e a capacidade humanas até que o homem conseguiu dominar a natureza, aplicar suas forças a seu uso, controlar os relâmpagos, atravessar oceanos e dominar até mesmo o ar.
Da mesma forma, a ignorância e o medo do homem primitivo tornaram a vida uma luta contínua do homem contra o homem, da família contra a família, da tribo contra a tribo, até que os homens perceberam que, unindo-se, por esforço conjunto e ajuda mútua, podiam realizar mais do que pela luta e pela inimizade. A ciência moderna mostra que até os animais aprenderam isso na luta pela existência. Certas espécies sobreviveram porque deixaram de brigar entre si e passaram a viver em bandos, o que lhes permitia se proteger melhor contra outras feras.[18] Na medida em que os homens substituíram o conflito mútuo pelo esforço conjunto e pela cooperação, avançaram, saíram da barbárie e se tornaram civilizados. Famílias que antes lutavam até a morte se uniram e formaram um grupo comum; grupos se uniram e se tornaram tribos, e tribos se federaram em nações. As nações ainda continuam, estupidamente, a lutar entre si, mas pouco a pouco também estão aprendendo a mesma lição, e agora começam a buscar uma forma de pôr fim ao massacre internacional conhecido como guerra.
Infelizmente, em nossa vida social ainda estamos em estado de barbárie, destrutivo e fratricida: grupo ainda combate grupo, classe luta contra classe. Mas também aqui os homens começam a perceber que essa guerra é insensata e arruinadora, que o mundo é grande e rico o bastante para ser desfrutado por todos, como a luz do sol, e que uma humanidade unida realizaria mais do que uma dividida contra si mesma.
O que se chama de progresso é justamente a realização disso, um passo nessa direção.
Todo o avanço da humanidade consiste na busca por maior segurança e paz, por mais proteção e bem-estar. O impulso natural do homem é em direção à ajuda mútua e ao esforço conjunto, seu desejo mais instintivo é por liberdade e alegria. Essas tendências buscam se expressar e afirmar apesar de todos os obstáculos e dificuldades. A lição de toda a história humana é que nem as forças hostis da natureza nem a oposição dos homens conseguem deter o avanço da humanidade. Se me pedissem para definir civilização em uma única frase, eu diria que é o triunfo do homem sobre os poderes das trevas, naturais e humanos. As forças inimigas da natureza já foram vencidas, mas ainda temos que lutar contra os poderes obscuros dos homens.
A história não mostra uma única melhoria social significativa conquistada sem enfrentar a oposição dos poderes dominantes — a igreja, o governo e o capital. Nenhum passo adiante foi dado sem romper a resistência dos senhores. Cada avanço custou uma luta amarga. Foram necessárias muitas batalhas longas para destruir a escravidão; foram necessárias revoltas e levantes para conquistar os direitos mais fundamentais para o povo; foram necessárias rebeliões e revoluções para abolir o feudalismo e o servilismo. Foi necessário guerra civil para acabar com o poder absoluto dos reis e estabelecer democracias, para conquistar mais liberdade e bem-estar para as massas. Não há um país na terra, nem uma época na história, em que algum grande mal social tenha sido eliminado sem uma amarga luta contra os poderes estabelecidos. Nos dias recentes, novamente foram necessárias revoluções para eliminar o czarismo na Rússia, o kaiser na Alemanha, o sultão na Turquia, a monarquia na China, e assim por diante, em vários países.
Não há registro de qualquer governo ou autoridade, de qualquer grupo ou classe dominante que tenha voluntariamente aberto mão de seu domínio. Em todos os casos foi necessário o uso da força, ou ao menos a ameaça dela.
É razoável supor que a autoridade e a riqueza terão uma súbita mudança de coração, e que agirão de modo diferente no futuro do que agiram no passado?
O bom senso lhe dirá que essa é uma esperança vã e tola. O governo e o capital lutarão para manter o poder. Eles fazem isso até hoje ao menor sinal de ameaça a seus privilégios. Lutarão até a morte por sua sobrevivência.
É por isso que não é profecia dizer que um dia terá de ocorrer uma luta decisiva entre os senhores da vida e as classes despossuídas.
Na verdade, essa luta já está em andamento o tempo todo.
Há uma guerra contínua entre o capital e o trabalho. Essa guerra geralmente ocorre dentro daquilo que se chama de forma legal. Mas mesmo essas, de tempos em tempos, explodem em violência, como durante greves e bloqueios, porque o punho armado do governo está sempre a serviço dos senhores, e esse punho entra em ação no momento em que o capital sente seus lucros ameaçados: então ele abandona a máscara de “interesses mútuos” e “parceria” com o trabalho e recorre ao argumento final de todo senhor: à coerção e à força.
É, portanto, certo que o governo e o capital não se deixarão ser abolidos pacificamente se puderem evitar isso; nem desaparecerão milagrosamente por si mesmos, como algumas pessoas fingem acreditar. Será necessária uma revolução para livrar-se deles.
Há quem sorria com incredulidade diante da menção à revolução. “Impossível!”, dizem com confiança. Assim também pensaram Luís XVI e Maria Antonieta da França apenas algumas semanas antes de perderem o trono e a cabeça. Assim também acreditava a nobreza da corte do czar Nicolau II na véspera da convulsão que os varreu. “Não parece que vai haver uma revolução”, argumenta o observador superficial. Mas as revoluções têm o hábito de explodir justamente quando “não parece que vão”. Os capitalistas mais visionários de hoje, porém, não parecem dispostos a correr riscos. Sabem que levantes e revoluções são possíveis a qualquer momento. É por isso que as grandes corporações e os grandes empregadores de trabalho, especialmente nos Estados Unidos, estão começando a introduzir novos métodos calculados para funcionarem como para-raios contra a insatisfação popular e a revolta. Eles oferecem bônus aos seus empregados, participação nos lucros e métodos semelhantes destinados a fazer o trabalhador se sentir mais satisfeito e financeiramente interessado na prosperidade de sua indústria. Esses meios podem temporariamente cegar o proletário quanto a seus verdadeiros interesses, mas não acredite que o trabalhador permanecerá para sempre contente com sua escravidão salarial, mesmo que sua gaiola receba uma leve dourada de tempos em tempos. Melhorar as condições materiais não é garantia contra a revolução. Ao contrário, a satisfação de nossas necessidades gera novas necessidades, dá origem a novos desejos e aspirações. Essa é a natureza humana, e é isso que torna a melhoria e o progresso possíveis. O descontentamento do trabalhador não será sufocado com um pedaço extra de pão, mesmo que ele venha com manteiga. É por isso que há mais revolta consciente e ativa nos centros industriais da Europa mais bem situada do que na atrasada Ásia e África. O espírito humano sempre anseia por maior conforto e liberdade, e são as massas as verdadeiras portadoras desse impulso para o progresso. A esperança da plutocracia moderna de evitar a revolução jogando um osso mais gordo para o trabalhador de tempos em tempos é ilusória e sem base. As novas políticas do capital podem parecer apaziguar o trabalho por um tempo, mas seu avanço não pode ser detido por esses paliativos. A abolição do capitalismo é inevitável, apesar de todos os esquemas e resistências, e será realizada apenas por meio da revolução.
Uma revolução é semelhante à luta do homem contra a natureza. Sozinho ele é impotente e não pode vencer; com a ajuda de seus semelhantes ele triunfa sobre todos os obstáculos.
O trabalhador individual pode realizar algo contra a grande corporação? Um pequeno sindicato pode obrigar o grande empregador a atender às suas demandas? A classe capitalista está organizada em sua luta contra o trabalho. É evidente que uma revolução só pode ser bem-sucedida quando os trabalhadores estão unidos, quando estão organizados em todo o país; quando o proletariado de todos os países fizer um esforço conjunto, pois o capital é internacional e os senhores sempre se unem contra o trabalho em todas as grandes questões. É por isso, por exemplo, que a plutocracia de todo o mundo se voltou contra a Revolução Russa. Enquanto o povo da Rússia pretendia apenas abolir o czar, o capital internacional não interferia: não se importava com a forma política que a Rússia adotasse, desde que o governo fosse burguês e capitalista. Mas assim que a Revolução tentou eliminar o sistema capitalista, os governos e a burguesia de todos os países se uniram para esmagá-la. Viram nela uma ameaça à continuidade de seu próprio domínio.
Lembre-se bem disso, meu amigo. Porque há revoluções e revoluções. Algumas revoluções mudam apenas a forma de governo, colocando um novo grupo de governantes no lugar do antigo. Essas são revoluções políticas, e como tais, frequentemente encontram pouca resistência. Mas uma revolução que visa abolir todo o sistema de escravidão salarial deve também eliminar o poder de uma classe de oprimir outra. Ou seja, não se trata mais de mera mudança de governantes, de governo, não se trata de uma revolução política, mas de uma que busca alterar todo o caráter da sociedade. Isso seria uma revolução social. Como tal, teria que enfrentar não apenas o governo e o capitalismo, mas também a oposição da ignorância e do preconceito populares, daqueles que acreditam no governo e no capitalismo.
Como, então, isso acontecerá?
[18] Veja Ajuda Mútua, de Piotr Kropotkin.
- Informações
- Prefácio
- Introdução
- Capítulo 1 — O que você quer da vida?
- Capítulo 2 — O sistema de salários
- Capítulo 3 — Lei e governo
- Capítulo 4 — Como o sistema funciona
- Capítulo 5 — Desemprego
- Capítulo 6 — Guerra?
- Capítulo 7 — Igreja e escola
- Capítulo 8 — Justiça
- Capítulo 9 — A igreja pode ajudá-lo?
- Capítulo 10 — O reformador e o político
- Capítulo 11 — O sindicato
- Capítulo 12 — De quem é o poder?
- Capítulo 13 — Socialismo
- Capítulo 14 — A Revolução de Fevereiro
- Capítulo 15 — Entre fevereiro e outubro
- Capítulo 16 — Os bolcheviques
- Capítulo 17 — Revolução e ditadura
- Capítulo 18 — A ditadura em ação
- Capítulo 19 — O anarquismo é violência?
- Capítulo 20 — O que é o anarquismo?
- Capítulo 21 — A anarquia é possível?
- Capítulo 22 — O anarquismo comunista vai funcionar?
- Capítulo 23 — Anarquistas não-comunistas
- Capítulo 24 — Por que a revolução?
- Capítulo 25 — A ideia é o essencial
- Capítulo 26 — Preparação
- Capítulo 27 — Organização do trabalho para a revolução social
- Capítulo 28 — Princípios e prática
- Capítulo 29 — Consumo e troca
- Capítulo 30 — Produção
- Capítulo 31 — Defesa da revolução