Antes de prosseguirmos, permita-me uma breve explicação. Devo isso àqueles anarquistas que não são comunistas.
Porque você deve saber que nem todos os anarquistas são comunistas: nem todos acreditam que o comunismo — a propriedade social e o compartilhamento de acordo com a necessidade — seria o arranjo econômico mais justo e adequado.
Primeiro expliquei a você o anarquismo comunista porque, a meu ver, é a forma mais desejável e prática de sociedade. Os anarquistas comunistas sustentam que apenas sob condições comunistas a anarquia poderia prosperar, e a liberdade, a justiça e o bem-estar poderiam ser assegurados a todos, sem discriminação.
Mas há anarquistas que não acreditam no comunismo. Eles podem ser geralmente classificados como individualistas e mutualistas.[17]
Todos os anarquistas concordam nesta posição fundamental: que o governo significa injustiça e opressão, que é invasivo, escravizador e o maior obstáculo ao desenvolvimento e crescimento humano. Todos acreditam que a liberdade só pode existir em uma sociedade onde não haja qualquer tipo de coerção. Portanto, todos os anarquistas estão de acordo no princípio básico de abolir o governo.
Eles discordam principalmente nos seguintes pontos:
Primeiro: a maneira como a anarquia se concretizará. Os anarquistas comunistas dizem que apenas uma revolução social pode abolir o governo e estabelecer a anarquia, enquanto os anarquistas individualistas e mutualistas não acreditam na revolução. Eles pensam que a sociedade atual se desenvolverá gradualmente para uma condição não governamental.
Segundo: os anarquistas individualistas e mutualistas acreditam na propriedade individual, ao contrário dos anarquistas comunistas, que veem na instituição da propriedade privada uma das principais fontes de injustiça e desigualdade, de pobreza e miséria. Os individualistas e mutualistas sustentam que a liberdade significa “o direito de cada um ao produto de seu trabalho”; o que é verdade, é claro. Liberdade significa isso. Mas a questão não é se alguém tem direito ao seu produto, e sim se existe tal coisa como um produto individual. Apontei nos capítulos anteriores que não há tal coisa na indústria moderna: todo trabalho e todos os produtos do trabalho são sociais. A discussão, portanto, sobre o direito do indivíduo ao seu produto não tem mérito prático.
Também mostrei que a troca de produtos ou mercadorias não pode ser individual ou privada, a menos que se empregue o sistema de lucro. Como o valor de uma mercadoria não pode ser adequadamente determinado, nenhuma troca é equitativa. Este fato leva, em minha opinião, à propriedade e uso social; isto é, ao comunismo, como o sistema econômico mais prático e justo.
Mas, como afirmei, os anarquistas individualistas e mutualistas discordam dos anarquistas comunistas nesse ponto. Eles afirmam que a fonte da desigualdade econômica é o monopólio, e argumentam que o monopólio desaparecerá com a abolição do governo, porque é o privilégio especial — dado e protegido pelo governo — que torna o monopólio possível. A livre concorrência, afirmam eles, eliminaria o monopólio e seus males.
Os anarquistas individualistas, seguidores de Stirner e Tucker, bem como os anarquistas tolstoianos que acreditam na não resistência, não têm um plano muito claro da vida econômica sob a anarquia. Os mutualistas, por outro lado, propõem um novo sistema econômico definido. Eles acreditam, com seu mestre, o filósofo francês Proudhon, que a banca e o crédito mútuos sem juros seriam a melhor forma econômica de uma sociedade sem governo. De acordo com sua teoria, o crédito livre, oferecendo a todos a oportunidade de tomar dinheiro emprestado sem juros, tenderia a igualar os rendimentos e reduzir os lucros ao mínimo, eliminando assim tanto a riqueza quanto a pobreza. O crédito livre e a concorrência no mercado aberto, dizem eles, resultariam em igualdade econômica, enquanto a abolição do governo garantiria a liberdade igualitária. A vida social da comunidade mutualista, bem como da sociedade individualista, se basearia na santidade do acordo voluntário, do contrato livre.
Apresentei aqui apenas o mais breve esboço da atitude dos anarquistas individualistas e mutualistas. Não é o propósito desta obra tratar em detalhes das ideias anarquistas que o autor considera errôneas e impraticáveis. Sendo eu um anarquista comunista, estou interessado em apresentar ao leitor as ideias que considero melhores e mais sólidas. Achei justo, no entanto, não deixá-lo ignorante da existência de outras teorias anarquistas não comunistas. Para um conhecimento mais aprofundado sobre elas, remeto você à lista de livros sobre anarquismo em geral que acompanha este trabalho.
[17] Os mutualistas, embora não se autodenominem anarquistas (provavelmente porque o nome é tão mal compreendido), são, no entanto, anarquistas em essência, já que não acreditam no governo nem em qualquer tipo de autoridade política.
- Informações
- Prefácio
- Introdução
- Capítulo 1 — O que você quer da vida?
- Capítulo 2 — O sistema de salários
- Capítulo 3 — Lei e governo
- Capítulo 4 — Como o sistema funciona
- Capítulo 5 — Desemprego
- Capítulo 6 — Guerra?
- Capítulo 7 — Igreja e escola
- Capítulo 8 — Justiça
- Capítulo 9 — A igreja pode ajudá-lo?
- Capítulo 10 — O reformador e o político
- Capítulo 11 — O sindicato
- Capítulo 12 — De quem é o poder?
- Capítulo 13 — Socialismo
- Capítulo 14 — A Revolução de Fevereiro
- Capítulo 15 — Entre fevereiro e outubro
- Capítulo 16 — Os bolcheviques
- Capítulo 17 — Revolução e ditadura
- Capítulo 18 — A ditadura em ação
- Capítulo 19 — O anarquismo é violência?
- Capítulo 20 — O que é o anarquismo?
- Capítulo 21 — A anarquia é possível?
- Capítulo 22 — O anarquismo comunista vai funcionar?
- Capítulo 23 — Anarquistas não-comunistas
- Capítulo 24 — Por que a revolução?
- Capítulo 25 — A ideia é o essencial
- Capítulo 26 — Preparação
- Capítulo 27 — Organização do trabalho para a revolução social
- Capítulo 28 — Princípios e prática
- Capítulo 29 — Consumo e troca
- Capítulo 30 — Produção
- Capítulo 31 — Defesa da revolução